Com o impacto, o pé esquerdo de Helen escorregou da embreagem, torcendo
seu tornozelo contra o piso do carro. No momento parecia ser apenas uma
leve distensão, ela recorda, mas a dor nunca passava. Pelo contrário, só
aumentava. Algum tempo depois, um toque mais leve, como o esfregar de
um lençol, disparava choques lancinantes em sua perna. “A dor era tanta
que eu não podia falar, embora por dentro estivesse gritando”,
escreveu a jovem inglesa em um diário on-line sobre o mal que a
atormentou pelos três anos seguintes.
A dor crônica que atinge
pessoas como Helen é diferente do golpe de advertência da dor aguda. A
dor aguda é a sensação mais intensa e alarmante que ocorre no corpo e
tem como propósito fazer com que paremos de nos ferir. Esse tipo de dor
também é chamado de dor patológica, porque uma causa externa, como um
dano em algum tecido, produz os sinais que viajam pelo sistema nervoso
até o cérebro, onde são interpretados como dor. Mas imagine se a agonia
extrema de um ferimento nunca parasse, mesmo depois da cicatrização,
ou se cada sensação comum do dia a dia se tornasse insuportavelmente
dolorosa: “Eu não conseguia tomar banho... a água caía como se fossem
facas”, lembra Helen. “As vibrações de um carro, alguém caminhando em
um piso de madeira, pessoas conversando, uma brisa suave... tudo dava
início à dor incontrolável. Analgésicos comuns… até mesmo morfina, não
surtiam nenhum efeito. Era como se a minha mente estivesse pregando uma
peça em mim”.
Infelizmente, Helen tinha razão. Sua dor crônica
era causada por defeitos nos circuitos nervosos da dor, que os induziam
continuamente a disparar um alarme falso, chamado dor neuropática, pois
tem origem no comportamento indevido dos próprios nervos. Quando
atingem o cérebro, os falsos sinais causam uma agonia tão real quanto
qualquer dor por causas verdadeiras, embora ela nunca passe e os médicos
em geral não consigam aliviá-la.
Pesquisas recentes estão
finalmente elucidando por que os analgésicos tradicionais em geral são
ineficazes no tratamento da dor neuropática: os alvos dos medicamentos
são apenas os neurônios, enquanto a causa por trás da dor pode estar em
células não neuronais disfuncionais chamadas células da glia, que se
localizam no cérebro e na medula espinhal. Descobertas sobre como essas
células, cuja tarefa é nutrir e regular as atividades dos neurônios,
podem se desequilibrar e interromper o funcionamento neuronal inovam no
tratamento da dor crônica. A pesquisa fornece ainda perspectiva
surpreendente de uma conseqüência infeliz do tratamento atual contra a
dor, que afeta algumas pessoas: o vício em narcóticos.
Circuitos e Interruptores da Dor
Para entender o que pode
causar a persistência da dor depois da cicatrização de um ferimento, é
preciso, antes de tudo, conhecer o que provoca a dor. Embora a sensação
dolorosa seja percebida no cérebro, as células nervosas que a produzem
não se localizam lá, mas sim na medula espinhal, coletando
informações sensoriais de todo o corpo. Os neurônios dos gânglios da
raiz dorsal (GRD), que representam o primeiro dos três estágios de um
circuito de percepção de dor, incham seus corpos celulares, como cachos
de uvas, nas juntas entre as vértebras da coluna, lembrando as
fileiras duplas de botões de um paletó transpassado indo do cóccix ao
crânio. Cada neurônio de GRD, como uma pessoa com os dois braços
esticados, estende para fora uma antena delgada, conhecida como axônio
ou fibra, para monitorar uma pequena região distante do corpo, enquanto
estira seu outro axônio na medula espinhal para tocar um neurônio que
retransmite impulsos pelo segundo estágio do circuito da dor, uma
cadeia de neurônios da medula espinhal. Essas células espinhais
transmissoras de dor reencaminham mensagens dos neurônios GRD até o
estágio final, o tronco encefálico e, por fim, o córtex cerebral. Sinais
de dor originados do lado esquerdo do corpo cruzam-se dentro da medula
espinhal para atingir o lado direito do cérebro, e os sinais do lado
direito são enviados ao lado esquerdo do cérebro.
A interrupção
do fluxo de informação em qualquer ponto do circuito de três estágios
da dor pode aliviar a dor aguda. Anestésicos locais, como a Novocaína
usada por dentistas para extrair dente sem dor, adormecem as
extremidades dos axônios em torno da região de injeção, impedindo as
células de emitir impulsos elétricos. Um “bloqueio espinhal”,
frequentemente usado para eliminar as dores do parto, interrompe os
impulsos de dor no segundo estágio do circuito, uma vez que feixes de
axônios das células dos GRD penetram a medula espinhal para se
encontrar com os neurônios espinhais. Esse bloqueio deixa a mãe
totalmente consciente para participar do parto indolor e auxiliá-lo.
Uma injeção de morfina atua no mesmo local, reduzindo a transmissão de
sinais de dor pelos neurônios espinhais enquanto as sensações não
dolorosas permanecem intactas. Por outro lado, anestésicos gerais usados
em grandes cirurgias interrompem o processamento
de informação
no córtex cerebral, deixando o paciente completamente inconsciente de
qualquer entrada sensorial dos caminhos neurais fora do cérebro.
Os analgésicos naturais do nosso corpo trabalham nas mesmas três
partes do circuito da dor. Um soldado em combate carregado com
adrenalina
pode sofrer uma grave lesão e não percebê-la, porque
o córtex cerebral ignora os sinais de dor durante situações
ameaçadoras e emocionalmente intensas. No parto natural, o corpo da
mulher libera pequenas proteínas chamadas endorfinas, que amortecem a
transmissão de sinais de dor assim que entram na medula espinhal.
Hormônios,
estados emocionais e muitos outros fatores também podem alterar
drasticamente a percepção de dor de uma pessoa, ao modular a
transmissão de mensagens ao longo dos caminhos da dor. Além disso,
muitos processos biológicos e substâncias que alteram o fluxo e o
refluxo das moléculas pelos canais iônicos em células nervosas
individuais contribuem em conjunto para regular a sensibilidade dos
próprios nervos. Quando ocorre uma lesão, esses fatores podem facilitar
os controles de disparo neuronal, auxiliando na tarefa dos neurônios
de transmitir os sinais de dor.
Esse estado desimpedido, porém, pode durar tempo demais, deixando as
células dos GRD hipersensibilizadas, de modo que emitam mensagens de dor
sem estímulos externos. Essa situação é a causa principal da dor
neuropática. O aumento da sensibilidade neuronal também pode causar
sensações anormais de formigamento, queimação, cócegas e dormência
(parestesia) ou, como na sensação de “chuva de facas” do caso de Helen,
pode amplificar sensações leves de toque ou temperatura a níveis
dolorosos (alodinia).
As tentativas de entender como os
neurônios dos circuitos da dor tornam-se hipersensíveis depois de um
ferimento há tempos têm se concentrado, o que não causa surpresa, nos
eventuais problemas que ocorrem nos próprios neurônios – os resultados
já forneceram algumas pistas, mas não um panorama completo do problema.
Minha pesquisa e a de vários colegas demonstraram, por exemplo, que
mesmo o ato de disparar impulsos para emitir sinais de dor altera a
atividade dos genes dentro dos neurônios da dor. Alguns genes regulados
por disparos neuronais codificam os canais iônicos e outras
substâncias que aumentam a sensibilidade celular. A ativação intensa de
células dos GRD quando algum tecido é lesionado pode então causar os
tipos de mudanças de sensibilização nesses neurônios, resultando,
eventualmente, em dor neuropática. Nossos estudos e o trabalho de
outros laboratórios também revelam, entretanto, que os neurônios não
são as únicas células que respondem a ferimentos dolorosos e liberam as
substâncias que promovem a sensibilidade neural.
As células da
glia são muito mais numerosas do que os neurônios na medula espinhal e
no cérebro. Elas não disparam impulsos elétricos, como fazem os
neurônios, mas têm algumas propriedades interessantes e importantes que
influenciam a atividade neuronal. As células da glia mantêm o ambiente
químico que envolve os neurônios: além de distribuírem a energia que
sustenta as células nervosas, elas absorvem os neurotransmissores
liberados pelos neurônios quando eles emitem um impulso a um neurônio
vizinho. Às vezes as células da glia até liberam neurotransmissores
para aumentar ou modular a transmissão de sinais neuronais. Quando os
neurônios são lesionados, as células da glia emitem fatores de
crescimento que promovem a sobrevivência e a cura neurais, e liberam
substâncias que convocam as células do sistema imune a combater a
infecção e promover a cura.
As Células da Glia Viram Suspeitas
Cientistas já sabem que
as células da glia respondem a ferimentos. Na Alemanha, em 1894, Franz
Nissl notou que, depois que um nervo sofria uma lesão, as células da
glia localizadas onde as fibras nervosas se conectam na medula espinhal
ou no cérebro mudavam drasticamente. As células da
micróglia
tornam-se mais abundantes, e células maiores, chamadas de astrócitos
por causa de seus corpos em forma de estrela, muito mais encorpadas,
inchadas com feixes grossos de fibras filamentosas que fortificam seu
esqueleto celular.
Já se compreendia que essas respostas gliais
serviam para promover o reparo dos nervos após o ferimento, mas como
elas agiam ainda não estava claro. Além disso, se uma lesão – como um
tornozelo torcido – ocorre longe do circuito espinhal da dor, os
astrócitos da espinha precisam responder não diretamente ao ferimento,
mas às mudanças da sinalização no ponto de retransmissão entre os GRD e
os neurônios espinhais. Essa observação implicava que os astrócitos e a
micróglia monitoravam as propriedades fisiológicas dos neurônios da
dor.
Durante as duas últimas décadas as células da glia
demonstram ter diversos mecanismos de detecção da atividade elétrica
dos neurônios, incluindo canais para detectar o potássio e outros íons
liberados no disparo neuronal de impulsos elétricos; e receptores
superficiais para sentir os mesmos neurotransmissores que os neurônios
usam para se comunicar através das sinapses. Glutamato, ATP e óxido
nítrico são alguns dos neurotransmissores importantes liberados por
neurônios que são detectados pelas células da glia, mas existem muitos
outros. Esse conjunto de sensores permite que as células da glia
monitorem a atividade elétrica nos circuitos neuronais ao longo do corpo
e no cérebro e respondam a variações de condições fisiológicas.
Assim
que os cientistas reconheceram a abrangência das respostas gliais à
atividade neural, as atenções se voltaram ao comportamento suspeito
dessas células de suporte em pontos de retransmissão da dor. Se as
células da glia estavam monitorando as transmissões neurais da dor, será
que também as estariam afetando? Exatamente 100 anos depois da
observação de Nissl da resposta da glia a uma lesão no nervo, um
simples experimento testou pela primeira vez a hipótese de que as
células da glia podem participar do desenvolvimento da dor crônica. Em
1994, Stephen T. Meller e seus colaboradores da University of Iowa
injetaram em ratos toxinas que matavam seletivamente os astrócitos, e
então verificaram se a sensibilidade dos animais a estímulos dolorosos
tinha diminuído. Isso não ocorreu, mostrando que os astrócitos não têm
um papel óbvio na transmissão de dor aguda.
Depois os cientistas trataram ratos com um irritante da fibra nervosa
que fazia com que gradualmente desenvolvessem dor crônica, semelhante à
maneira como o acidente de carro irritou os nervos do tornozelo de
Helen. Os animais que receberam veneno contra astrócitos desenvolveram
muito menos dor crônica, revelando que os astrócitos eram de alguma
maneira responsáveis pelo desencadeamento da dor crônica depois da
lesão no nervo.
As células da glia liberam muitos tipos de
moléculas que podem aumentar a sensibilidade dos neurônios dos GRD e da
medula espinhal que retransmitem sinais de dor ao cérebro, incluindo
fatores de crescimento e alguns dos mesmos neurotransmissores que os
próprios neurônios produzem. Os cientistas perceberam que as células da
glia interpretam disparos neurais rápidos e mudanças neurais induzidas
por eles como um sinal de agonia nos neurônios. Como resposta, as
células da glia liberam as moléculas sensibilizantes tanto para reduzir
o estresse nos neurônios, facilitando sua sinalização, como para
iniciar a cura.
Outra classe vital de moléculas geradas pelas
células da glia em resposta a danos ou estresse neuronais são as
citocinas, abreviação de “citocinéticas”, ou seja, relativas ao
movimento celular. As citocinas agem como poderosos faróis químicos que
as células do sistema imune seguem para atingir o local de uma lesão.
Considere o imenso problema do tipo “agulha no palheiro” que uma célula
de seu sistema imune enfrenta ao encontrar uma pequena farpa na ponta
do seu dedo. Citocinas potentes liberadas pelas células danificadas
pela farpa alertam as células imunes do sangue e da linfa para correr
até a ponta do dedo, combater a infecção e iniciar o reparo. Elas
induzem também mudanças no tecido e vasos sanguíneos locais que
facilitam o trabalho das células imunes e promovem a cicatrização, mas
isso resulta em vermelhidão e inchaço. Os efeitos coletivos dos sinais
de citocinas são chamados de inflamação.
Uma farpa demonstra
quão efetivas são as citocinas ao encaminhar as células imunes a uma
ferida, mas ainda mais impressionante é como uma pequena farpa pode
ser dolorosa – a dor é muito desproporcional ao minúsculo dano sofrido
pelo tecido. Logo, até a área circundando a farpa torna-se inchada e
doloridamente sensível, embora essas células vizinhas não tenham sido
danificadas. A dor em torno de uma ferida é causada por outra ação de
citocinas inflamatórias: elas amplificam muito a sensibilidade das
fibras de dor. Sensores de dor supersensíveis próximos a uma lesão são a
maneira de o corpo fazer com que nós deixemos a região em paz para que
possa cicatrizar.
Os neurônios, como regra geral, não são a fonte das citocinas do
sistema nervoso – esse papel é das células da glia. E, da mesma maneira
como as citocinas podem tornar hipersensíveis as terminações nervosas
em torno de uma farpa no dedo, as citocinas liberadas pelas células da
glia na medula espinhal em resposta aos sinais intensos de dor podem se
espalhar para as fibras nervosas vizinhas e também torná-las
hipersensíveis. Pode-se então iniciar um ciclo de neurônios
supersensibilizados que disparam desenfreadamente, induzindo as células
da glia a um estado reativo, no qual elas liberam mais fatores
sensibilizantes e citocinas, na tentativa de aliviar a tensão nos
neurônios, mas, ao contrário, acabam prolongando-a. Quando isso
ocorre, a dor pode se originar dentro da medula espinhal a partir de
fibras nervosas que não estão diretamente lesionadas.
As
respostas iniciais das células da glia a uma lesão são benéficas para a
cicatrização, mas, se forem intensas demais, ou se continuarem por
tempos longos demais, o resultado é uma dor crônica incontrolável.
Vários grupos de pesquisa têm documentado os ciclos de retroalimentação
que induzem as células da glia a prolongar a liberação de fatores
sensibilizantes e sinais inflamatórios que levam à dor neuropática, e
muitos têm realizado experimentos para tentar reverter esses processos.
Esse trabalho conseguiu até desenvolver maneiras de tornar mais
efetivos os medicamentos usados para tratar a dor aguda.
FATOS DA DOR
10% a 20% da população dos Estados Unidos e da Europa afirmam sofrer de dor crônica.
59% das pessoas que sofrem de dor crônica são mulheres.
18%
dos adultos com dor crônica procuram terapias medicinais alternativas.
Apenas 15% dos médicos clínicos gerais sentem-se à vontade para tratar
pacientes com dor crônica, de acordo com pesquisa recente.
41% dos médicos afirmaram que esperam os pacientes solicitarem especificamente analgésicos narcóticos antes de prescrevê-los.
Cortando a Dor pela Raiz
No passado, todos os
tratamentos de dor crônica buscavam amortecer a atividade dos
neurônios, mas a dor não pode ser interrompida se as células da glia
continuarem a incitar as células nervosas. Descobertas de como as
células da glia caem em seu círculo vicioso de sensibilização dos
nervos criam estratégias para atingir as células da glia disfuncionais e
interromper uma fonte fundamental da dor neuropática. Tentativas
experimentais de tratar a dor neuropática pelo controle das células da
glia focalizam-se, portanto, em aquietar essas células, bloqueando
moléculas e sinais que desencadeiam o processo inflamatório, e enviando
sinais anti-inflamatórios.
Em experimentos com animais, por
exemplo, Joyce A. DeLeo e seus colegas da Dartmouth Medical School
demonstraram que uma substância chamada propentofilina suprime a
ativação dos astrócitos e, portanto, a dor crônica. O antibiótico
minociclina impede que tanto os neurônios como as células da glia
produzam citocinas inflamatórias e óxido nítrico, além de reduzirem a
migração de micróglias na direção das lesões, sugerindo que o
medicamento poderia evitar a hiperatividade glial.
Um método
semelhante concentra-se nos receptores Toll-like (TLRs), proteínas
superficiais das células gliais que reconhecem certos indicadores de
células sob estresse e incitam as células da glia a emitir citocinas.
Linda R. Watkins, da University of Colorado em Boulder, e seus
colaboradores demonstraram em animais que o uso de uma substância
experimental para bloquear um subtipo particular de TLR, o TLR-4, em
células gliais da medula espinhal revertia a dor neuropática
proveniente de lesões no nervo ciático. Curiosamente, a naloxona –
fármaco usado para reduzir os efeitos de opiatos em tratamentos contra o
vício – também bloqueia respostas gliais à ativação do TLR-4. Watkins
demonstrou em ratos que a naloxona também pode reverter a dor
neuropática totalmente desenvolvida.
Outro medicamento
existente, na verdade uma antiga substância analgésica que pode ser
usada quando muitas outras falham, é a maconha, legalizada para uso
medicinal em alguns estados americanos. As substâncias da planta de
maconha imitam compostos naturais do cérebro chamados canabinoides, que
ativam certos receptores em neurônios e regulam a transmissão de sinais
neurais.
Entretanto, há dois tipos de receptores de canabinoides no cérebro e no
sistema nervoso: o CB1 e o CB2. Eles têm funções diferentes. A ativação
do receptor CB2 alivia a dor, enquanto a ativação dos receptores CB1
induz aos efeitos psicoativos da maconha. É notável que o receptor CB2,
que alivia a dor, não esteja presente nos neurônios da dor; ele
aparece nas células da glia. Quando canabinoides unem-se a receptores
microgliais CB2, as células reduzem sua sinalização inflamatória.
Estudos recentes descobriram que, à medida que a dor crônica se
desenvolve, o número de receptores CB2 da micróglia aumenta, um sinal
de que as células se esforçam para tentar capturar mais canabinoides em
sua vizinhança para promover alívio analgésico. Agora,as companhias
farmacêuticas buscam intensamente medicamentos que possam ser usados
para controlar a dor através da atuação nos receptores gliais CB2 sem
drogarem as pessoas.
O bloqueio de citocinas inflamatórias
usando fármacos anti-inflamatórios já existentes, como a anakinra
(Kineret) e o etanercepte (Enbrel), também reduziu a dor neuropática em
animais. Além de interromper sinais inflamatórios, a adição de
citocinas anti-inflamatórias, como a interleucina-10 e a IL-2, pode
acalmar a dor neuropática em animais, como demonstraram vários grupos.
Dois medicamentos existentes, a pentoxifilina e o AV411, inibem a
inflamação ao estimular as células a produzir IL-10. Além disso, grupos
diversos reverteram a dor neuropática durante até quatro semanas ao
injetar os genes que dão origem à IL-10 e à IL-2 nos músculos ou na
espinha de animais.
Poucos desses fármacos já foram testados
contra a dor em humanos (ver tabela na pág. ao lado), incluindo o
AV411, que já é utilizado como tratamento anti-inflamatório em derrames,
no Japão. Um teste na Austrália mostrou que pacientes com dor
voluntariamente reduziram suas dosagens de morfina enquanto estavam
sendo tratados com o medicamento, um sinal de que o AV411 contribuiu
para aliviar sua dor. Mas o AV411 pode estar agindo por meio de
mecanismos que vão além de acalmar a dor causada pela inflamação,
realçando uma reviravolta na história das células da glia e da dor.
FATORES DE RISCO PARA DOR CRÔNICA DO PESCOÇO OU DAS COSTAS
Idade avançada
Ansiedade
Ser mulher
Depressão
Levantamento de peso
Viver sozinho
Uso de nicotina
Não praticar atividades físicas
Obesidade
Trabalho repetitivo
Estresse
Insatisfação com o trabalho
Equilíbrio Restaurado
A
morfina é um dos mais potentes analgésicos conhecidos, mas os médicos
são cautelosos por causa de suas propriedades perversas, a ponto de
muitos prescreverem doses inferiores às devidas mesmo para pacientes com
câncer terminal. Como a heroína, o ópio e narcóticos modernos, como o
OxyContin, a morfina ameniza a dor enfraquecendo a comunicação entre os
neurônios da medula espinhal e diminuindo, assim, a transmissão dos
sinais de dor.
Infelizmente, o poder da morfina e de outros
narcóticos de bloquear a dor enfraquece rapidamente com o uso repetido,
uma propriedade chamada tolerância. Doses mais fortes e mais frequentes
tornam-se necessárias para obter o mesmo efeito. Pacientes com dor
crônica podem ficar viciados, combinando seu sofrimento com uma
debilitante dependência de drogas. Os médicos, temendo que sejam
considerados suspeitos de traficar, em vez de prescrever quantidades
tão grandes de narcóticos, são geralmente forçados a limitar os
pacientes a dosagens que não são mais efetivas para aliviar sua agonia.
Alguns pacientes recorrem ao crime para obter prescrições ilegais; e há
até aqueles que acabam se suicidando para pôr fim a seu sofrimento. Uma
nova descoberta na intersecção entre alívio de dor, glia e vício em
drogas evidencia que as células da glia são as responsáveis pelo
desenvolvimento da tolerância à heroína e à morfina.
As suspeitas de que as células da glia estejam envolvidas na tolerância
a narcóticos surgiu com a observação de que, da mesma maneira como um
viciado sofre quando larga a heroína de uma só vez, pacientes
dependentes de analgésicos narcóticos que interrompem o tratamento
bruscamente sofrem crises dolorosas de abstinência clássica. Os
pacientes (e viciados em heroína) tornam-se tão hipersensíveis que mesmo
som e luz comuns causam dores lancinantes. A semelhança entre esses
sintomas e a hiperestesia observada na dor neuropática sugere a
possibilidade de uma causa comum.
Em 2001, Ping Song e Zhi-Qi
Zhao, do Instituto de Fisiologia de Xangai, testaram se o
desenvolvimento da tolerância à morfina envolvia as células da glia.
Quando deram doses repetidas de morfina a ratos, os pesquisadores viram
aumentar o número de astrócitos reativos na medula espinhal. As
mudanças na glia causadas pelas repetições nas doses de morfina foram
idênticas àquelas observadas na medula espinhal depois de um ferimento
ou quando se desenvolve a dor neuropática. Os cientistas então
eliminaram os astrócitos com o mesmo veneno usado por Meller para
mortecer o desenvolvimento de dor crônica em ratos. A tolerância à
morfina nesses animais foi reduzida drasticamente, indicando que as
células da glia contribuem de alguma maneira.
Muitos grupos de
pesquisa desde então tentam bloquear sinais entre neurônios e glia (por
exemplo, desativando receptores de citocinas específicos das células
da glia), assim como procuram testar se a tolerância à morfina é
afetada. Essa pesquisa mostra que bloquear sinais inflamatórios com
destino ou origem nas células da glia não altera em nada as sensações de
dor aguda normal, mas, se os bloqueadores forem injetados juntamente
com morfina, doses mais baixas do analgésico são requeridas para obter o
mesmo alívio, e a duração do alívio da dor é dobrada. Essas
descobertas indicam fortemente que as células da glia estavam se opondo
ao efeito aliviador da morfina.
As ações para minar a atuação
da morfina fazem parte da tarefa fundamental das células da glia de
manter a atividade equilibrada em circuitos neurais. Como os narcóticos
diminuem a sensibilidade dos circuitos da dor, as células da glia
respondem liberando substâncias neuroativas que elevam a excitabilidade
neuronal para restaurar os níveis normais de atividade nos circuitos
neurais. Com o tempo, a influência glial aumenta a sensitividade dos
neurônios da dor, e, quando o efeito amortecedor dos circuitos da dor
causado pela heroína ou por analgésicos narcóticos é repentinamente
removido pela abstinência brusca da droga, os neurônios disparam
intensamente, causando supersensibilidade e sintomas dolorosos de
abstinência. Em animais de laboratório, a crise dolorosa de abstinência
do vício em morfina pode ser drasticamente reduzida por medicamentos
que bloqueiam as respostas gliais.
A modulação da atividade
das células da glia, portanto, pode ser comprovadamente uma chave não
apenas para aliviar a dor crônica, mas também para reduzir a
probabilidade de desenvolvimento de vício em pessoas tratadas com
analgésicos narcóticos. Pode-se imaginar quais teriam sido os
benefícios que medicamentos com atuação sobre a glia teriam trazido para
aqueles que há muito tempo buscaram controlar tais fontes imensas de
sofrimento e tragédia para o homem. Mas as conexões entre neurônios,
dor e vício se esquivaram dos cientistas do passado, que ignoravam os
parceiros vitais dos neurônios – as células da glia.

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Fonte Scientific American Brasil |